quarta-feira, 8 de junho de 2016

1:58 h

eram dois pras duas.

aquelas horas;
naquelas alturas,
era como as duas tinham a si.

os dois,
cegos no fetiche diário,
pra perceber não tinham senso,
que em seu casamento a quatro,
viviam as duas às claras,
um caso secreto assistido.


fábiogondim

alvorada

pardais verbalizam
nossos sonhos
às quatro da manhã.

quem sonha depois dessa hora,
sonha mudo.


fábiogondim

a escolha

sobrevoa
com uma só asa,
a borboleta,
a rosa.

voo assimétrico
e corajoso
de quem decidiu logo cedo,
sem desculpas,
sem abrir mão das flores,
o que ser quando crescer.


fábiogondim

confins de março

hoje vivo a estação das águas,
há chuva minando dalma.

conto as gotas,
entre o sereno e o tormento.
rogo à minha iansã de dentro
que à farta brotação
tanta torrente tenha valido.


fábiogondim

páscoa

miravam o levante da carne,
entreolhando-se em choque,
as rochas e seus grandes olhos.

era finzinho de inverno.
movida a pesada campa,
puseram o moço
a ter com coelhos.

fábiogondim

eutanásia

vasto tempo passado,
sete dias ou três.
duas voltas na fechadura,
um quarto
de maçaneta talvez.

dentro,
a casa não estava.

o pulso do refrigerador,
último aparelho ligado,
único sinal de vida.

puxei o fio da tomada,
dei um fim pro nosso amor.


fábiogondim

direito autoral

três quartos
da minha obra,
tatuados na tua pele.

e agora?


fábiogondim

eclipse

o sol e você.
distante.

eu só,
sua sombra a meu lado.
mãos dadas,
como antes,
como dândis.


fábiogondim

(para samuel inácio)

a condição

eis que no sinal,
abre o segundo vermelho.
  
eu,
parado na guia,
sem norte.

esperando a vontade do tempo,
incapaz de dar as horas


fábiogondim

passara

o dia em que eu abrir
meus mares de dentro
e fazer possível toda passagem,
meu coração baterá
no anti-horário das paixões.

sua onipresença 
nas coisas mais imbecis,
será lembrança vaga.

o tempo,
a última coisa
a me fazer esperar.

você, ah você!...
deposto do poder das horas
partirá sem regresso
ao estranho mundo dos cucos.

fábiogondim

dignose

a solidez do teu cheiro
entope minhas veias
mais que qualquer colesterol malvado.

tua voz de quadrinhos
me faz lembrar a primeira
brotação de peitos
das meninas gêmeas dos olhos.

mas teu gênio,
aí é que está,
espalhou intriga entre meus neurônios.
sinapses são acasos,
um dia sem surto no calendário bissexto.

fábiogondim

poemas

são palavras gêmeas
separadas no parto.

movidas por um poeta,
revelam-se
num certo ato.

fábiogondim

guerra de papel

há uma guerra civil de argumentos,
pessoas se matando
com palavrinhas e palavrões.

quando as frases de efeito sem causa imperam,
sempre nos resta a oração.
nela,
somos única palavra.

fábiogondim


para Janet Zimmermann 

retinerário

tuas curvas
desviam meus olhos retos.
entreolham estrábicos,
o nariz do palhaço.

meu acidente de percurso
no teu entorno grasso.

fábiogondim

para Carmem Lúcia

poeta

há mais para se ver
além do mirante das retinas.

seu verso como tantos,
abençoados,
descerra o véu das miudezas
que nossa vista cansada de guerras
não põe tento.

seguir sem esse brilho abrindo clareiras,
faria da vida um tacho de ranço.

vida longa! 
pros que abrem ouvidos
aos que sentem fome,
a sentir o perfume.

fábiogondim

para Rubenio Marcelo


rei morto, rei posto

tornarei reinado de mim,
quando teu cheiro impregnado
for coroa de jasmim.

fábiogondim

primeiro bicho do singular

há um bicho de dentro
que anda pra frente e pra trás.

desloca seu peso morto,
nunca sai
do mesmo canto.

engana o próprio dono.

fábio gondim

da série "as sete preguiças capitais"

salubá!

dona dos mistérios das sinas,
costureira dos fiapos da meada
que fazem morte e vida,
serem a mesma corda 
reinando sobre o músculo do tempo.

barro primeiro no encontro de elementais.
colo de todos os mortais e orixás.

carrega meu destino em tuas mãos sábias;
dá-me tento pra que me desvie
da ignorância dos rastros
que empurram os seus
para os caminhos perdidos
dos becos sem porta.

fábiogondim

liga

a chuva não faz o rio.
mas casa,
dia após dia, água com terra.

no altar das cachoeiras,
o santo é o barro.


fábiogondim

ogun ieê!

és martelo em bigorna;
ninguém se fere,
tudo se torna.

tua espada risca fogo
no chão pisado dos vis.
lacera o mal tentado;
rasga, rompe, arranca raiz.

para que meus inimigos,
mesmo os sem coração,
me amem e por mim sejam amados.
e meus amigos alicercem sobre base de ferro,
em meu caráter,
a justiça e a bendição.

fábiogondim

fatal

ando ouvindo sozinho.

conversas calado
nas vezes que finjo silêncio.

teus barulhos passeiam
aos soluços pela minha carne.

meu grito de dentes abertos,
arfante e mudo,
tenta ser melodia em teu verso.
sem resposta.

teu chiado de elepê arranhado da gal,
é nosso diálogo possível.

temos dois minutos
e quarenta e cinco segundos
pra entender que, "dois e dois são cinco"


fábiogondim

presente de grego

 o natal está próximo.
deitado no leito de vida,
sou apenas couro inflado.

minhas vísceras estão espalhadas
pelos cantos da casa
envoltas em papel colorido
e laços de fita.

meu oco de dentro
vislumbra o oco de fora.

minha alma tenta também embrulhar-se,
mas deus, o espertalhão,
usou cola forte.

os presentes serão abertos
em abril ou maio.
o embrulho do estômago
jamais tornará.

fábiogondim


(para carmem lúcia de andrade)

salto

era do quarto
ou quinto andar do corpo,
mas nem importava a altura exata
medida pelas ripas de costela.

era de onde pensava
ter saltado outra vez o coração,
pra mais um seu grande amor.

depois,
ou mais um pouco depois que isso
perceberia então o desassossego;
como quem não tarda
a lavar de mau jeito
com unhas afiadas,
o próprio rego.


fábiogondim

devoção

cresci ouvindo ser uma santa.


então pus logo manto e coroa.
depois veio o rímel e o gloss;
a cinta e o espartilho,
o peito e a bunda.

a fila de romeiros arfantes.
altares improvisados
nas capelas dos becos.

fábiogondim

a criação

na trempe,
a caçarola fumegando.
vapor balsâmico.
tampa aos espasmos
soprando pelas ventas.

a fome por si não alcança
os nacos de manjar.

cria então deus,
a boca do estômago.
está na mesa.


fábiogondim

o trauma de adão

adão, aproveita a siesta de deus
de sexta para sábado.

corre doido pro black friday
e tomado pelo consumismo,
volta sem tostão
e pisoteado pra casa.

inda hoje

tem horror à supermercados

fábiogondim

nicklaus

meu gato, um folgado:
não mata um passarinho,
sequer faz menção.
nem notou que existem acho.
não frequenta um eja,
não carpe um quintal,
não faz um suflê.
sou trouxa então?
passa o dia todo
que deus levou seis pra fazer,
descansando.
passa o rabo por entre minhas pernas
e toda a indignação é passado.

fábiogondim


(para nicklaus, in memoriam)

adoração

tempos em tempos troco de pele.

muda o cheiro,
a cor,
a textura.

a minha permanece intacta, 
fingindo-se indiferente e curtida.

mas no couro de dentro,
rezo em adoração
cada oração do meu verso.

pedaços de poema dos que amei,
escritos no teto
da capela do meu corpo.

fábiogondim


(para Filipe Catto)

a visita

os dias vão passando
e a gente vai virando passa.
a cada hora menos futuro.
passado.

não sei bem ao certo
quando comecei a deixar-me
pelo caminho.

as vistas deram
o primeiro sinal de cansaço;
depois a memória das palavras,
por fim a paciência.

vem lenta, dando-me o tempo
de perder o juízo
e achar-me entregue.

sinto a morte embarcando
na estação anterior.

fábiogondim

a hora do banho

nunca gostei de tomar banho.

só acontecia, por que minha mãe
também me fez lavagem cerebral.

mesmo distante, no mesmo horário,
sua voz severa põe-se a martelar
a minha consciência.

fábiogondim

abraço

não saio na chuva pra me molhar,
mas pra que ela em mim encontre,
o calor merecido
a quem vem de tão longe


fábiogondim

estúpido cupido

meu coração
é uma tinteiro estourada.

vive a escrever
textos manchados de amor,
estórias quase ilegíveis.
enlouquecida
pela voracidade das matizes,
transcreve paixões
nos rostos dos amantes.
mas quase sempre incompetente,
molha-se em rios de salmoura.

pinta borrões de preto e vermelho,
verdadeiras obras de morte.


fábiogondim

o livro de elias

vivem insones
entre teu indicador e o polegar
palavras chamadas e escolhidas.
tens o dom de arrebatar mesmo o baixo calão.

a palavra jesus diz à palavra deus:
__ pai, ponde vossos escribas a revisar o último livro,
depois desse moço, há muito que se escrever

fábiogondim


(para elias borges)

conselhos de mãe

fábio, meu filho,

não deixe a agulha lamber
o prato vazio da vitrola.

música alegre pra quando eu estiver aqui
e música alegre pra depois que eu sair.
para os dias quaisquer um pulôver.

não se resfrie meu menino,
mantenha o calor dos primeiros dias.
essa quase total coisa,
que habita o talho do arroz,
numa entreabertura qualquer de dentes
na boca do pai.

fábiogondim

o adeus

ela que tantas vezes,
depois de um beijo na fronte,
cobria seu menino todas as noites;
naquele dia, olhos turvos,
vendo seu menino coberto
na calçada sob sol escaldante;

tomada por desespero incontido,
desta vez o descobrira,
para um último beijo.


fábiogondim

terça-feira, 7 de junho de 2016

reza

empoleiradas na garganta,

vão voando uma a uma, as palavras.
alçadas pela mesma corda
que há pouco as prendia

desfeitos os nós, outra vez a sós,
eu e a vigília por nova oração

fábiogondim

alzheimer 3

meu amor toma um porre de tinto.

minha mãe me acorda aos berros
dizendo ele estar vomitando sangue,
pondo o bofe pra fora.

eu, com três diazepães assando no quengo,
corro desnorteado ao auxílio.

no meio do corredor encontro minha avó
assustada e perdida, repetindo a mesma pergunta 
feita mil vezes no dia:
__ onde eu estou?
e respondo:
__ no inferno vó, estamos no inferno!
__ e quem é você? indaga serena...

respiro fundo...

quase lhe digo ser o cão.
ao invés, um abraço agradecido;
é a única lúcida na casa

fábiogondim

alzheimer 2

minha avó,
noventa e quatro anos.
um farrapinho a memória.

quando me vê, um brilho nos olhos:
a antena gasta do tampo,
oscila entre a alegria

de que eu seja um querido
e o pavor diante dum algoz.

pensam que não se lembra de mim.
por certo é única sabendo
que os dois sou

fábiogondim

alzheimer

tenho tanta saudade...

e olhando angustiada,
procurando em meu semblante
alguma pista do que tanto falta sente,
desiste.
não mais se lembra.

esperta,
não demora,
muda o assunto.
sabe do que se trata,
não pretende que percebam.


fábiogondim

faxina

é dia de limpeza.
um banho de guiné na poesia.
letras varridas com sal,
palavras enxaguadas no tanque,
versinho cheirando a pinho.

lá fora, um cisco, um pó denso,
trazido pela ventania de metáforas,
que eu abra a porta do olho espera.

nada me move ou me apraz por ora,
hoje quero o instinto das feras.


fábiogondim

desertor

naquele metro quadrado de hora,
olhei-me no fundo dos ossos
querendo encontrar-me inda ali.
não estava.

procurei então nos cabelos,
na pele, no cheiro;
na vassourinha dos olhos...
nada.

só sentia a poesia
como quem sente fome

eu era deserto de mim,
sem lembrar em que momento

o estio se mudou para dentro.

fábiogondim

le voyage

já permeio
os extremos cíclicos da vida.
e quando esta se repete em erros,
a ida é próxima.

mas o que levarei em valores
senão os equívocos abraçados
na sede de ser pacífico?

nem um oceano de acertos
roubaria a alegria
que treme em meus lábios.

fábiogondim

saint-tropez

não que eu prime pela queda,
que tenha alguma tara por tropicões.
nem que goste de comer poeira
ou dar com a porta na cara,

ou a tapas.

é que meus tropeços
me caem bem

fábiogondim

apagão 2

quanto neologismo
de forma banal abortado
pela borracha branca macia.


fábiogondim

apagão

a borracha branca
para o lápis preto poeta:
sua senhora de engenho.

o apagador no quadro negro
para o giz branco contista:
seu eterno censor.

quanta palavra nascida morta!


fábiogondim

substrato

nada concreto o sustenta.

o ideal para o amor
não é amar,
mas abstrair

fábiogondim

lassos

entre nós, 
tudo atado.

uma maçaroca de corações;
um entremeio de nossos fins;
uma saideira

que sempre fica.

o jeito é beber, até cair em si.

fábiogondim

carne de sol

diariamente,

as lágrimas
sob o sol escaldante,
eram enxugadas
no varal de arame farpado.

o filho,

levado inda cedo pela margem,
faria muita água correr
por debaixo daqueles cílios.

as gotas de estanho
eram já a única coisa que se movia,
em seu rosto cada dia mais seco.

fábiogondim

danação

o amor, cego maldito,
arrancou-me os olhos
e pôs-se a fazer malabares
nas paradas dos sinais.

tatuou nos buracos deixados,
o brilho do teu olhar.

o jeito agora,
é sentar na pedra do tempo
e aguardar,
cicatriz e nova chaga.

fábiogondim

salmoura

meus mares se perdem no horizonte,
fazem onda no piscar.
entreolham-se,
quando querem fazer graça.

vivem em maré alta.
transbordando palavra salgada.

são água de conserva
para meus sonhos.

fábiogondim

versinho voluntarioso

não sou máquina de escrever, sou poeta.

dou minha palavra
quando ela bem entenda.

não bate
na mesma
teclaaaaaaaa!

fábiogondim

bailarina

quanto mais me punha

na ponta dos pés,
mais abaixo na multidão te perdias.

eu era bailarina.
tu,
pedra na sapatilha.

fábiogondim

a profecia

deus obrou em mim.

minha mãe dizia que não vingava,
meu pai que daria ruim.
dei.

fábiogondim

à última vista

cruzava aquela rua
todas as manhãs: sempre alerta,
prudente, com rapidez.

naquele dia o olhar atento,

distraído e lento
pra bunda saliente dum rapaz,
deu a "atravessar pro outro lado",
novo sentido,
seu revés.

fábiogondim

memória

as roupas dentro do armário.
sob atmosfera de naftalina,
suspensas em seu cabides de aço,
guardam engomada e imóvel
toda a andança de seu dono.


fábiogondim

liquidez

as águas tomam os vãos.
o álcool toma as vinhas.
os vinhos tomam as águas.

os vãos tomam no cu.

fábiogondim


(para Begèt de Lucena)

circense

poesia é pra ser romanesca, dizem.

mas quando torce óbvios
e enxuga-se entre o riso e o choro,
a poética passa da condição de licença
à aposentadoria .

quando o que parece tolo,
revela-se precioso.

e poeta,
o grande senhor do circo,
é aquele que faz
a linha do lábio hesitar,
entre a cava
e a curva.

fábiogondim

 para Lázara Papandrea