sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Quando o bem é mal-estar

E que o amor que se vive a dois
Que é o amor que se vive a sós
E que o amor que se vive assaz
Que é o amor que se vive a três
E que o amor que se vive audaz
Que é o amor que reúne iguais
E que o amor que se tem no rés
Que é o amor que se vive e jaz
E que o amor que se dá ao viés
Que é o amor que se vive a mais
E que o amor que em si traduz
Seja o amor que descanse em paz

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"Amor, caíste-me mal" de Pedro Espanhol

O incêndio no topo do bolo

O calor era insuportável, os noivos assim diziam
Um ao outro sobre o calor.
Como quem pede uma ajuda, um copo d'água, 
Um ventilador.
Era insuportável o calor, seguiam assim dizendo
Como se o misto grotesco de mal-estar e desassunto
Tornasse o fogo um ar fresco.
Mas nada podia ser feito: A única água que havia
Vertia do colo da moça colando o tule no peito,
Vertia do braço do moço colado à moça num laço.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"



"Bolo de noiva" de Lula Cardoso Ayres

Oração de São Fábio

Que minha voz seja dita e calada quando a hora é chegada
E minha inação seja vista e esquecida quando a hora é partida.
Que minha ausência seja notada e cega quando a hora não chega
E minha presença seja serena e forte quando a hora não parte.
Que meus amores sejam flores.
Que meus filhos sejam meus pais
E meus desafetos meus netos.
Que minhas más-fés sejam celestiais
E que minhas boas intenções não sejam infernais.
Que minha morte seja curta e minha volta seja amena,
Numa terça ou numa quarta sem empatar o fim de semana.
E desejo também, que meus reversos sejam reversíveis
E meus versos textualmente transmissíveis.
(Amém!)

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"



"Autorretrato I" de Fábio Gondim

Ekklesia 320

Rogai por nós agora e sempre
Benditos versos de teu ventre
Nossa Senhora da rima rica,
Nosso Senhor da exata métrica.
Livra-nos da pobreza estética
Da rima parca, da cantiga seca.
Abençoa o soneto que contenta
E o haicai que ornamenta.
Bem aventura a balada que alegra
E perdoa o rondó que gruda.
Livra-nos dos versos erros
E encha-nos de textos Barros.
Ao barro voltemos em vilancete
Agora e na hora de nossa verve.

(Fábio Gondim)

(Do poeseiro "Desperdício da palavra")



"Pôr-do-sol" de Ricardo Paula

O beijo de Romeu

Quando o meio se ausenta e o inteiro desespera,
O engodo mostra a cara e o veneno que não era
É pivô da vida inteira quando faz-se a descoberta:
A procura do outro lote é o que gera a inquietude
Pois se educa que é metade e que a outra parte é busca.

Quando enfim se acha o resto e a parte outra mostra,
Que assim um meio sobra ou assim um meio falta,
(pois inteiro sempre fora desde antes de outrora)
Dá-se o fim da empreitada e o início da contenda:

Quem contenta com pedaço? Quem sustenta com fatia?
Mas quem tem a crença exata de que a parte não sacia?
Só entende o que se passa, só entende o que se presta,
Se a parte que se falta ou a parte que se resta,
Não a parte que palpita mas a parte que interessa.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da Palavra"



"Romeo & Juliet" de Richard MacDonald

O amor peça a peça

O amor me pregou uma peça
E ainda que torpe me peças,
Mirando sua têmpera errada
Forjado avesso às avessas,
Ao teu lado não faço morada.
Nenhum pedaço, nem um nada.

E relapso com seus lapsos,
Vil como um lego baldado,
Busco o encaixe empalmado,
Ausente de toda a trapaça
Fagulha que lembre a chama,
Do fogo aceso em minh'alma.

Sinto que enfim tudo passa,
Não tarda bem cedo começa.
Até que do armário a peça
Do desuso outra vez é retirada
E num lampejo de loucura
Novamente torne usada.

(Fábio Gondim)



"Ironia é minha sombra" de Mark Kostabi

Lindeza (quando amor é ablepsia e anosmia)

Seus pés, ai que cheiro bom!
Me deixa sem ar, extasiado, boquitorto.
Cheiro de mar, cheira a luar
Cheira a rato morto.
Seus cabelos, que lindas madeixas!
Me deixas absorto, nem cabem conselhos.
Ora tão brancos, ora azuis, ora vermelhos.
Seu rosto bonito esconde o perigo.
Sua boca tão linda esconde a partida.
Que entre seus dentes repousa em abrigo
E o fio da sua língua disfarça a lambida.
Ah! Mas nada se compara ao coração:
Não sei se de pedra, não sei se de cera
Agora não medra, nem fede nem cheira.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"O cego rabequista" de José Rodrigues de Carvalho

A face oculta do amor

Hoje vejo detalhes que a órbita estúpida escondia:
Meu corpo já era um entalhe no corpo de quem não havia.
Hoje recebo entidades sem rosto nem identidades
Que sopram conselho e picuinha.
Acendem a vela a maldade e eu sopro de volta a velinha.
Hoje psicografo poemas insanos, faço rimas, faço planos,
Anuncio meu retorno com orgulho, júbilo, alegria e alarde
E recaio quando chega a tarde.
Hoje percebo que era tatuagem embrulhada em bala ou chiclete,
Que se move em tempo qualquer.
É como fazer a passagem sem ter deixado lembrete.
É como viagem sem mala no duplo sentido da fala.
Como comer sem colher. Como nem ser querido sequer.

(Fábio Gondim)


Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"


"The two masks" de Giorgio de Chirico

Perda dos sentidos

Não tenho medo de perder, tenho medo é de ganhar.
Alguns só são quando em par e o que se resta a saber
É o extravio próprio do ser iludido em seu torpor.
O ganho quando é amor falece lento no lar
Até o medo de ter e não ter n'alma se confundir.
Como quem chegasse pra partir o que demorou-se a saber.
Cada dia então perder a quem se ama se propor,
É ter de volta o amor que na ânsia de viver entregou-se ao delator.
Quando enfim recuperar o sabor e o olhar, o odor e a lenta dor,
Estará pronto a ouvir um novo perigo a rondar, um novo tempo a ruir.
Estará pronto pra amar, estará pronto pro amor.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"Bastidores" de João Fahrion

Dissabores

Vida ácida, ela melhora quando azeda.
E às vezes como tudo que é gostoso
Passa a ser perigoso:
Dobra o peso da carga, passa do ponto, amarga.
Pra o tempero não desandar comprometendo o paladar,
A vida deve ser dia-a-dia cozinhada em banho-maria.
Abre-se um campo largo, o que era azedo e ficou amargo
Acaba novamente doce como se umami sempre fosse.
Adiante e naturalmente, ainda que lentamente,
A doçura do gosto se une ao desgosto
E acaba salgando a alegria num exame de glicemia.
Mas o gostoso mesmo da vida é o preço pago a cada lambida.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"


"A tentação de Santo Antônio" de Salvador Dalí

A balada do Diabo

Quando o Diabo tá virado no Cão não tem jeito não.
Não tem pó ou baseado que segure o Cão danado.
Não tem culto, passe ou missa que impeça a derriça.
Quando o Cão tá virado o Bicho é certo que rebusque o lixo
E se encontra Haldol ou crack não se livra do ataque.
Nem fogueira santa ou feitiço que arrume o rebuliço.
Quando o Cão coloca a zorba e empomba a gira e a pemba
Nem marafo nem farofa desenrola a macumba.
Quando o Cão chupa a manga não tem o que tire a zanga
Nem pedra, pasta ou cola, nem fininho, nem charola.
Quando o Cão dana, é pilhado sem mesclado, fera sem Pondera,
É conhaque com Prozac, curaçau com Gardenal.
Nem ação global ou profilática, nem carismática
Nem santo, nem orixá que evite o bafafá.
Quando o Cão dana a receita é simplesinha:
Joga um graveto ou osso, reza uma Salve Rainha,
Capricha num Pai Nosso e liga pra carrocinha.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"



"Demônio sentado" de Mikhail Vrubel

Descasamento

Caso e descaso. Não tem mais carinho só se for sozinho.
Não mais ninho, nem do leite, nem deleite.
Nem lobo, nem chapeuzinho:
Que coração enorme você tem!
Tudo bem! Nem tudo tem: feng shui e desalinho;
Caráter, caratê e um copo de saquê; kama sutra e cama extra;
Yin, yang e um copo de Tang; nem yoga nem a droga;
Case e camicase; bonsai e mal entra,
Já começa sem mim a busca tosca de um novo fim.
Não mais pés quentinhos no caminho ou descaminho.
Passos tortos, sandálias rotas e meias bocas.
Nem Cupido, nem Eros, nem more boleros:
Que coração enorme você tem!
Pura impressão, dura armadilha:
Perdi a linha e o botão, perdi a mão e o sex appeal.
No embalo perco a razão e ainda compro um sexo a pilha.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



Artwork de autor desconhecido

A dor do amor

O amor está no ar
E sendo fácil de pegar,
Não se tem vacina ou crença 
Que previna a doença.
E quem quer imunidade
Ou sequer sair do coma,
Se amor e felicidade
Confundem causa e sintoma?
Sabendo que a desavença
Se cura com outra doença,
Não quero ser são ou crente.
Eu quero é ficar doente!

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"



"Amor e dor (Vampiro)" de Edvard Munch

o agradecimento e a ingratidão

quando o perdão se ausenta,
são farinha do mesmo grão
que o ranço da mágoa fermenta.


o agradecimento só é exato
quando agradece o ingrato;
o efeito em contrapartida,
é que a ingratidão só é veto
quando for agradecida.


assim funciona a ofensa
como verbo de aliança.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"



"Jesus Washing Peter's Feet" de Ford Madox Brown

O destro

Mesmo ruindo num ato 
A Palavra resulta em conserto.
É seu fundamento e propósito,
Ainda que o Verbo escrito
Acabe em palácio e concreto.
Seu emprego anima o Espírito
E o Homem de braço aberto
Sábio anuncia o decreto:
Ao falso pastor cede o indulto
E o lado direito ao devoto.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"
1ª peça da trilogia "Capítulo das devidas posições no Cerimonial da Glória 



"Borrasca en azul" de Oswaldo Guayasamín

O canhoto

Sabendo que paira isento e politicamente incorreto,
Atos, o Livro relato, de fato alimenta o descuido 
Com o assento do lado oposto daquele que posa com o Alto.
Seguindo perdido e enclaustro aquele que é eleito inapto
Do primo momento que nato ao findo momento que morto,
Amarga a marca da Besta e o glíter cintila na testa.
Mas já no primeiro advento a força que emana do eleito
Resume a Lei num ditado e faz que o mistério do estado
Que causa não faz esse efeito, declare liberto o hiato.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"
2ª peça da trilogia "Capítulo das devidas posições no Cerimonial da Glória"



"Cabeza y mano" de Oswaldo Guayasamín

O homem que beijava bem

Derrama-se a turba sozinha
Em louvores e ladainha,
Vivendo no Inferno e no Céu
Ouvindo igrejas ao léu,
Criando uma estúpida crosta
No rumo que há tempos se mostra.
Seguindo a índole herege 
Elege a poesia também:
O beijo doce que o outro tem, 
Ainda que beije a mais ninguém
O fez depois do beijinho
A Vida, a Verdade e o Caminho.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"


"O beijo de Judas" de Giotto



O homem que beijava mal

São mágicos esses lugares: o Céu, o Inferno e a Padaria. 
Quando se está no Céu e se quer estar no Céu
E sequer respirar outros ares, vem a culpa.
A maioria debanda estreme como quem foge da Cruz qual o Cão.
Crentes que enxofre e baunilha sustentem a mesma quilha.
Terminam na ideia convicta que a marca da Besta incrustada
Repousa fugaz feito praga debaixo das línguas de sogra.
Quando se está no Inferno, quando é onde se quer estar
E nada mais a desejar, vem a culpa.
A maioria debanda feito pomba como se o Espirito Santo operasse,
O Diabo o pão não amassasse e do gosto viesse o asco.
Terminam acordando em bloco que o gesto de Judas incauto
Repousa sagaz feito cobra nos alvos beijinhos de coco.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"

"El beso de Judas" de Juan Bauty

Transtornos

Descoberta por Raquel a bipolaridade divina
E recomendado por Merel o uso da Sertralina.
Resta encontrar abrigo pra doente tão notável.
Seria correto o Inferno onde repousa o Inimigo?
Onde floresce afável o falso beijo do amigo?
Se inculpa fosse fato, talvez a calma dos Céus;
Se culpa fosse o dito, talvez o banco dos réus;
Se mea culpa o veredito, pra onde iria meu Deus?
Sendo o Alto bipolar, não sabe se dá ou se tira,
Não sabe se fica ou se vai, não sabe se cura ou se pira,
Mais irregular é o homem na condição de poeta:
Não sabe se rima ou destoa, não sabe se sopra ou açoita.
Não blasfema nem abençoa, não galga nem sai da moita.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da Palavra"

"No limiar da eternidade" de Vincent van Gogh

Falhas da Criação

Por mais estranho que possa,
Mais absurdo que seja,
Menos digno que se trate,
Tanto herege que pareça.
Água e ar entrando no mesmo lugar.
A fé que encrava
No múltiplo sentido da Palavra.
O Livro bem escrito
De autor diverso e desconhecido.
O mistério do Protagonista
Que tanto se mostra e tanto se guarda
Como abelha que espalha pista,
E confunde e falha e tarda.
Enquanto aquele que dorme ao Sol
Aguarda calmo e profeta
O momento rock'n'roll
Do soar da sétima trombeta.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"

"A criação de Adão" de Michelângelo

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Malíssima trindade

Minha língua, meu cérebro e meu caráter por vezes destoam. 
Às vezes agrido dizendo o que penso, 
Outras vezes penso o que digo e agrado.
Outras ainda, nem penso e nem digo
Pra não ter que compor desagravo.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"

"Campo de batalha" de Carlos Dugos



A medida da palavra

A distância que divide a palavra dita da comédia acertada é medida pelo tempo da piada.
A distância que divide a palavra dita da graça alcançada é medida pelo emprego da Palavra.
A distância que divide a palavra dita do esquecimento da próxima palavra é medida pelo fio da meada.
A distância que divide a palavra dita da tragédia provocada é medida à queima roupa.
A distância que divide a palavra escrita da consequência por ela causada, não se pode avaliar, não se mede com nada.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Desperdício da palavra"

"Livraria" de Norberto Nunes

Quando o amor te põe contra ti

Respire fundo e deixe o amor invadir-lhe os pulmões, 
Apenas não o confunda com o ar que respira.
O amor transpira felicidade, mas se a verdade é clara,
O amor se cala ainda que a fala seja de quem amara.
Entoa um duelo dentro d' alma e o amor nos leva à lama.
Mesmo sendo a mesma pessoa, quem amara e quem ama.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"No hago otra cosa que pensar en ti" de Antonio Gallero


Desamor (1º ato)

A primeira manhã sem você
Foi como se Sol não houvesse

E minha vida findasse 

Na lembrança dos dias passados,
Dos dias bem passados.
Das noites mal dormidas
Velando seu corpo amado.
Do olhar festivo de nossas crianças
Nas ocasiões em que eu havia chegado.
Das vezes que brindamos conquistas
E dos revezes sabiamente esquecidos.
Das madrugadas que juntos então,
Brindando esse amor sem razão,
Admirávamos no alto risonhos
A constelação dos nossos sonhos.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"


"El suicidio de Dorothy Hale" de Frida Kahlo


Desamor (2º ato)

Na primeira tarde apartado de ti
Acordei ferido e confuso.

Olhando, não estavas ao lado

E como recém-mutilado, adormeci.

Sonhei que o vazio me invadia,
O horror de uma vida tardia.
Olhando, não estavas ao lado
E qual túmulo violado, adormecia.

Seguia num coma pesado.
Pesava em meus ombros tua falta
E o sono adiava meu medo.
Qual filho levado em segredo,
Sem rumo estava acordado.

Agora que o sono não vem,
Que nada me apraz, nem ninguém
E a noite escurece os céus,
Entrego meu amor ao adeus.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"Recuerdo" de Frida Kahlo

Desamor (3º ato)

Na primeira noite sem você ao lado 
Enlouqueci como tornam os ingratos.
Mal disse santos, chorei aos cantos,
Xinguei meu Deus sem recatos.

Sangrei a fronte, feri o peito,
Preguei meus pés pelas mãos,
Um falso estigmatizado sem jeito.

Na primeira noite sem você ao lado
Desejei a morte, desejei um monte.
Então por pura sorte me pus à cama
E com muita calma esqueci seu gosto,
Esqueci seu rosto, esqueci o cheiro.
Esqueci o jeito e os seus defeitos.

Pelos mesmos becos já não ando mais,
Pelas mesmas bocas já não fumo mais.
Na primeira noite sem você ao lado
Abracei minha'alma e dormi em paz.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"El sueño" de Frida Kahlo

Desamor (Grand finale)

Quando o amor mostra a cara, 
A máscara difere da carne
Na forma, na cor e no modo. 
Como se ontem não houvesse,
Não passa o amor de um engodo.

Nunca sei quem é o outro,
Logro é o que tenho de troco.
Talvez o correto pensasse
Que pago justo o meu preço
Se verdade é que de mim desconheço.

Confesso a culpa inconteste
E se sigo brindando o embuste.

Bons versos canta a sertaneja
Sobre o amor e o desamor.
Se outrora foi regozijo,
Ora é guizo que relampeja,
É sentimento roedor.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"

"Autorretrato en un paisaje con el sol poniéndose" de Frida Kahlo

Amor bipolar

Sempre achei bonito, embora sem propósito,
Esse estranho hábito de comparar casais a pares de imãs.
Hoje encontrei sentido:
Mulheres giram em torno de si,
Homens não conseguem sair do lugar.
Um dia, é natural
(Quando os polos iguais se cruzam)
Que a desgraça se una ao casal.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"Aldeia russa" de Lasar Segall"

Amor de se lamber os beiços

Amo o seu melhor e o seu pior.
Amo o seu pior, amo o seu odor.
Amo onde há pele lisa e onde há cicatriz.
Amo o seu calor.
Amo quando malmequer
E ainda assim me faz feliz.
E limpo com a língua o suor
Do delta que se fizer
Entre a lã das sobrancelhas
E a base do tobogã do seu nariz.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"The couple in lace" de Max Ernest

Moulin bleu

No domingo percebi o óbvio: que tudo que havia era azul
Porque o rosto era azul.
Assim, todo o resto era azul.
E então todas as coisas eram e então todas as cores eram,
Tão claro e visto a olho nu.
Na segunda como que mágicos, vi seus náufragos olhos azuis
E os meus arranquei-os voraz pra merecer dos seus a luz.
Entretanto olhos eram, não mais.
Na terça vi(?) que tudo era pouco, aí arranquei quase todo o resto:
Coração e baço por um abraço... Nem um olhar me foi lançado.
Na quarta, atei-me em quartos e morri na quinta e na sexta.
A caixa, a cara, a coroa era azul e eu era só uma mutilação vodu.
O verso da linha 13 era azul. Céu, Inferno, Umbral era azul
E lá, pasme: treva azul escuro.
Ressuscitei anilado no sábado contrariando o dia que fui criado
E segui com o que havia sobrado: uma Bic azul e uma folha pautada
Remendando uma poesia amputada
A palavra na posição 171 é azul, a pantera cor-de-rosa é azul,
A poesia é azul, os olhos são azuis.
O amor enfim é azul, é bleu, é blue.

(Fábio Gondim)

Do poeseiro "Ensaio acerca do desamor"



"Fauna in La Mancha" de Vladimir Kush