quinta-feira, 30 de abril de 2015

.que mais de dois invernos junto à mesma pessoa

é suicídio de alma, desperdício de corpo. que amor é bem perecível: nem refrigerador nem respirador.
que sua contumácia faz roer os bofes, esfarelados lentamente, pelo ácido que verte secreto sob o véu da insistente estúpida felicidade a dois.

Fábio Gondim


Ilustração de Anton Semenov

sexta-feira, 24 de abril de 2015

.creio em deus pai,

em deus filho,

...em deus neto nenhum crédito,
de nada faço direito:

habito o revés do avesso,
alvejo a tez do mormaço,
almejo o viés do traço reto,
o desconcerto.

carrego o dom de ferir com afago o relento das peles
e marcar com ferro a sombra das almas.

o terceiro veio de sangue.
o que não diz a que veio

Fábio Gondim
Ilustração de Anton Semenov

quinta-feira, 23 de abril de 2015

.domingo na missa:

um olho no Cristo o outro no padre.
o fogo subindo, a água escorrendo... 
benta.

a comunhão:
[a água
e o vinho].

a faixa apertando o ventre da moça,
quase que sufocando ao meio a criança...
as duas.

findo o salmo, a água estourando.
do bojo escondido suor que derrama.
a água, o sal, a cruz: o batismo.

registro do filho em nome do padre

Fábio Gondim
Ilustração de Anton Semenov

.o tal que arrancava molares,

tirava o leite das cores:

tingia de verde esperas;
corava de rosa os mares.

pintava o Sétimo Céu.

herdou um colar de sisal

Fábio Gondim (para o doutor Joaquim)
"Tiradentes supliciado" de Pedro Américo

sábado, 18 de abril de 2015

.todo santo dia defronte à tevê,

o terço.
o copo raso vira remédio sobre a mesa. o rosário de aço escorrendo entre os dedos o irremediável: o nó no final das contas, lesão por embaraço repetitivo. o colar bendito enroscado num prego no teto, enfeitando o pescoço do corpo suspenso. os pés soltos no ar, como um anjo

Fábio Gondim


Ilustração de Anton Semenov

sexta-feira, 17 de abril de 2015

.ia e vinha pela mesma picada,

mesmo que fritasse seu tampo a rotina dos dias sem nuvem e cozinhasse suas beiras a dos dias sem alma. mesmo que nem fosse caminho; vinhaeia dia após outro. era quando se tinha o filho mais perto,
levado no meio do tempo. parada; exausta; ajoelhada defronte, beijava a testa da cruz meio torta fincada à beira da estrada. [...] numa ida encontra o marco desfeito, servido ao calor de alguém de um dia sem alma. plantada diante das cinzas; o último beijo ao vento, seu menino, posto cremado, de vez se fora

Fábio Gondim
Ilustração de Anton Semenov

.meu limite entre tampa sã e loucura,

é sinteticamente controlado:
seiva de Diazepam,
saliva de Clonazepam.
horas em que Pã é deus meu
e minhas ovelhas acolhe.

nada me faltará:
nem a alegria dos desatinados
nem o dissímulo dos imbecis

Fábio Gondim


"F5" de Anton Semenov

quarta-feira, 15 de abril de 2015

.acusado diariamente ser ímpio

pela mãe doente, 
enquanto resignado a alimentava com cenouras,
nacos de carne e um caldo quente,
destampou a colecionar suas impiedades:
dezoito anos de prisão;
um prato aos cacos;
doze garfadas na goela da megera...
...donde vertia sangue, sopa e sossego
Fábio Gondim
Ilustração de Anton Semenov

sábado, 11 de abril de 2015

.trancado sozinho em seu quarto:

tempo parado; lâmpada no modo escuro; cortante silêncio; corpo e alma insanos; coragem ausente.
só o zumbido de nota incessante: um descompassado dó de si

Fábio Gondim


Ilustração de Anton Semenov

.findo o escalpo do polpudo corpo,

seu alvo tronco fora todo comido;

de resto apenas a pele de tom pálido
e o visgo que à carcaça atava
atirados à mira dum fado rasto.

fonte de potássio, comédia e drama,
jazia oca a casca da banana

Fábio Gondim
In this image Stephan has used two bananas to complete his re-imagining of Gustav Klimt's The Kiss painting
Foto de Stephan Brusche

sexta-feira, 3 de abril de 2015

.a natureza do inacessível

é o que torna
a coçada nas costas,
na relação dos que amam,
o bem mais palpável

Fábio Gondim

Gravura de George Cruikshank

quinta-feira, 2 de abril de 2015

.do lado de fora:

passados uns cinco meses,
nenhum movimento.
nem um chute nem um nada
que amansasse a ânsia dos pais.

o coração batia, o sexo já era sabido,
mas o silêncio doente vindo do ventre
já castigava os ouvidos de quem quisesse ver.
ocorre que naquele momento,
naquele exato momento (h)ouve o primeiro aceno,
seguido de sucessivos esperneares,
espreguiçares frenéticos
que duraram meia dúzia de minutos,
pra um agora curto descanso.
restaurada a alegria,
dormiram todos.
sono que seria breve.
do lado de dentro:
acordou de seu longo torpor
e viu-se enterrado vivo,
mergulhado numa espécie de lama.
tentou aos murros escapulir da caixa estranha.
a agonia claustrofóbica
durou meia dúzia de minutos.
passado mais algum tempo,
escorreu aos pedaços
pelas pernas da mãe

Fábio Gondim
*Arte: Ilustração de Darel Valença

quarta-feira, 1 de abril de 2015

.nem dali era.

por ingrato acaso atendera a chamada.
doutro lado a voz quase familiar:
__ sua mãe chega no ônibus das quatro,
preciso que a busque!
desligado o aparelho;
sem resposta,
foi feliz por dois ou três quartos de segundo.
descompensado pela breve ilusão
e a perda da mãe há tempos,
saiu sem dar o recado
Fábio Gondim
ilustrações sombrias e surrealistas de anton semenov, dark images, gothic ilustration, surreal, surrealista dark, imagens de tirar o sono, imagens de horror, ilustrações de horror, surrealismo moderno, anton semenov, design gráfico inspiraçao, graphic design inspiration, illustration, ilustraçao, palhaço sombrio, morte
Ilustração de Anton Semenov