sexta-feira, 12 de junho de 2015

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paira velado em nosso quintal
um holocausto desses tempos,
lentamente alvejando a raça,
nas aldeias dos subúrbios dourados.
não há morte massiva,
nem câmaras de gás nem diários.
na cidade da lama e do pó
de torres e pires
e nobres jardins girrassóis terena guarani kaiowá,
os dias são trançados em cordas,
vidas presas na garganta.
do gargalo dos corpos
de álcool trinta e nove por cento,
cambaleiam apanhadores de pesadelos,
abaporus de si

fábio gondim (para aqueles que se querem livres)
br 163 km 259
"Abaporu" de Romero Britto
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tua língua afiada
a lâmina de barbear meu cio.
teus olhos fundos
nadando no raso da garrafa.
minha fala te comendo as beiras.
teu falo me dizendo coisas tontas,
revirando meu estômago
e gavetas outras tantas.
meus pelos brotando no rosto
penteando teus cílios.
quando abertos meus olhos,
só teu cheiro de adeus
exalando há sete anos.
o perfume que conheço

fábio gondim
notas amadeiradas
Ilustração de Marcel Vertês para o perfume Shocking de Schiaparelli 1938
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reservada mesa pra treze,

principia o banquete antropofágico:
carne e sangue, as iguarias.

seis do lado esquerdo, seis doutro.
dentre estes o maître.

distribui na sexta
as sobras da ceia ao povo.
as peles laceradas pelos abutres,
ossos roídos pelos cães,
líquidos sorvidos pelos pecadores,
até a cesta de pães e a carta de vinhos
tornarem no domingo.

ao maître em desalinho,
o estrangulamento de si
pelo melhor bufê já servido

fábio gondim
ceia pagã
Imagem da Web



quinta-feira, 11 de junho de 2015

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foste previsível como tua rotina diária:

pela manhã me punhas pra rua
com beijo previsto e afetos.
à tarde te punhas pra vida aos saltos.

na noite me deixavas em espera
e o lixo é que punhas pra fora.

saberia mais tarde que duas vezes
guiavas o lixo pra longe no dia:
uma no fim da noite,
outra, na porta, pela manhã,
quando selavas em minha boca
os lábios por outro beijados.

fábio gondim
a rotina do lixo

"Diploma no lixo" de Cícero Lopes
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era a primeira vez que ia à venda o menino,

a primeira aventura às compras.

enroscado no vão da barra circular do pai
ia equilibrando em duas rodas seu corpo.
a julgar pelo peito estufado,
bem provável todas as coisas do mundo.

comprado o objeto de desejo,
volta o menino a guiar-se pela estrada de terra.
num buraco ingrato, o tombo.
a sacola de papel rasgada,
o toddy que àquelas eras se punha em vidros.

o desejo e a vida aos cacos,
chocolate misturado à poeira fina do chão.
a coça quando em casa chegasse.

fábio gondim
chocolate e pó
Serigrafia de Rubens Gerchman
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a lona derramando lágrimas de vela,

o cheiro plástico cobrindo os corpos.

um palhaço em chamas,
uma trapezista lançada ao ares.
fogo de artifício.

o feno torrando a crina do cavalo,
o elefante pisando os pagantes,
o mágico sumindo na fuligem.

um menino morrendo de rir
no canto do picadeiro

fábio gondim
o circo pegando fogo
"O grande circo do mundo" de Daniel Bueno

quarta-feira, 10 de junho de 2015

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a besta enfim confessa que fez besteira,
o céu se abre aos ímpios.
haja asa pressa gente tanta.
todo mal forjado e ungido
na fundição da virtude:
paira sob o sexto chacra
a marca do cristo,
selada na testa da besta
fábio gondim
o revés do selo
Imagem da web
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os pés pendendo na cadeira,
não ainda o chão alcançam.
o cheiro de talco
despertando o desejo da fera
que a coloca na altura do colo.
os pés balançando em espasmos
fazendo dança à melodia de tango.
passos empurrados antes do tempo.
os pés, o chão nunca alcançarão
fábio gondim
anjos içados
"Pequeno urso" de Romero Britto
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vou amarrar seus cadarços,

derrubar você.

colocar seu nome na boca dos outros.
pedir aos orixás que blindem meu corpo
pra sua macumba,
tirar seu encosto da minha bunda.

riscar com pemba a nossa demanda,
a minha agenda,
a oferenda dos seus vãos.

banhar-me de arruda,
secar-me do seu suor.

bater cabeça, girar cavalo, tornar a si,
queimar ponto de fogo no seu centro
e despachar você de volta pra mim

fábio gondim
matando um bode por dia (da série "versos pra oferenda")
Imagem da web

terça-feira, 9 de junho de 2015

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falta altemar na jugular das bestas,

na língua das serpentes,
nos corpos que balançam içados,
suspensos pelas cordas vocais.

falta manoel no vão da carne dos dedos,
dos ossos indicadores e polegares,
na mão que chama o lápis à dança.

sobram falsos profetas da língua,
de lábia cheirando a lavanda barata,
entupindo ouvidos com letras vazias,
afundando aos poros
com versos rasos.

oração transformada de bálsamo em praga.

é chegado o final dos tempos da palavra,
o anti-escrito reina

fábio gondim
fim dos tempos verbais
Ilustração de Virginia Mori
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passeava os olhos brancos

pela paisagem fixa em monocromo.
se fechados ou abertos nada tinha a ver.

por sorte não via nos outros olhares
a repulsa mirando de esgueio
seus olhos brancos de escuridão.

via mais que isso,
o borrão das almas sem olho.

fábio gondim
olhos brancos de escuridão
Mãe cega de Egon Schiele

sexta-feira, 5 de junho de 2015

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ênclise

papai-mamãe
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mesóclise,
trenzinho-de-palavras
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próclise,
divórcio vocabular

fábio gondim
colocação pronominal
365_big
Óleo sobre tela de Igor e Marina
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rufam tambores, vem festa.
canto,
para que desça sobre o meu teu cavalo.
giras,
fazendo de mim o teu eixo.
vaza suor amargo em descarrego.
na encruzilhada do teu corpo
entrego minha oferenda
fábio gondim
a oferenda
Ilustração Cecilia Panipucci
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volta,
que o único carinho que tenho em dias
vem das tiras havaianas
roçando meu peito do pé
fábio gondim
Ilustração de Sarah Bauer
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enfastiado das feridas do semi-aberto,
dispôs de corda, silver tape
e náilon de dar pontos:
trinta anos em regime fechado,
vinte e duas tatuagens
e nenhuma cicatriz
fábio gondim
"Niño preso" de José Luis López Galván

terça-feira, 2 de junho de 2015

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i. declaro-me posse tua,

pra usufruto
e para além de agora.

ii. prometo fechar a alma a outros amores
e o corpo a lassos prazeres.

iii. abro mão de minhas vontades
em função de teus mimos.

iv. ciente de que a quebra de acordo
implica no fogo eterno
-amor eterno, a outra escolha-,
subscrevo-me mui,
a contragosto...

fábio gondim
declaração de amor
"Go freak" de Anton Semenov
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rasga-me,

sou teu presente.

o passado deixemos
para depois dos dias.
que rastro é passo atado,
embrulhado na boca do estômago
do revés das horas.

e o futuro,
transato vestido de ora
a forrar o nu de nossas peles

fábio gondim (para Samuel Inacio Rodrigues)
presente de grego
Ilustração de Anton Semenov
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decidido a limpar-se do fardo,

aliviando a carga,

sorveu um frasco de sapólio,
outro de creolina.

pesou-lhe ao estômago,
no resto dos dias,
só mais uma úlcera
a comer-lhe os quilos e a paz.
experimentou a leveza de um origami.
partiu porém no tempo certo,
sem adiantamentos

fábio gondim
destino de origami
Ilustração de Anton Semenov

segunda-feira, 1 de junho de 2015

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as ruas,
todas elas lhe cobrando passos mais largos.
corcéis furiosos de lata cobrando à galope.
modernos painéis vaga-lumes
denunciando a propaganda de engano
duma vida inteira.
as luzes da cidade apagando quando passa,
deixando clara a escuridão do seu miolo.
as placas indicando o caminho a se perder.
ele plantado frente à faixa,
à espera dum coração que não abre
fábio gondim
sinal dois tempos
Ilustração de Anna Anjos