sábado, 20 de dezembro de 2014

era tecelã de versos risos,

fazedora de alegrias bordadas.

fiava sorrisos trançados

que desatavam a amarra das caras,
alinhavando risadas nas bocas.
fugia de nós que a laçasse num aperto
e a prendesse ao apego.

temia repetir passos em falso
de passados versos laços
lhe apertando o pescoço.

mas dias outros

vem se deslaçando aos poucos.
permitindo que chuvas brotem amores
e sóis apontem outros ares.

carrega o júbilo em seus lábios francos,

a urgência em seus olhos intensos,
o ofício raro dos que trazem a luz
estampada no rosto.
o trabalho caro dos que levam a paz
e a espalham sem custo.

Fábio Gondim



Para Suzana Afonso


Da série "Personagens Diversos"



"So happy" de Romero Britto

escrevia boleros

pelas paredes do meu corpo,
com seus lábios apontados
de um vermelho mais que sangue.

julgando eu não poder ouvir mentiras
rascunhadas em minha pele,
me chamava à pista,
a seguir seus passos.

embriagada pela dança das letras
por muito pouco cedi ao baile.
mesmo sabendo ser vã a música,
fingi ignorar os vis segredos
que minhas paredes tinham ouvido.

boleros tão bem escritos,
haviam de algo bom ter por certo...

(... e lá estava eu, a besta,
abandonada noutro fim de festa).

Fábio Gondim

Da série "Miniventuras extrapassionais de Charlenne Shelda"


Ilustração de Juliane Engelhardt

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

quando vais e me deixas em espera

como fazes agora.
quando vens e me tiras do sério
e me tiras do Fábio.

não sei.

há uma celebração invisível quando estás,
há festa, há dança e fumaças de fazer voar.
tudo disparado sem foco nem direção.

é que quando vens me trazes junto
e que quando vens é que me encontro.

Fábio Gondim


"Little sad boy IV" de Toon Hertz

admiro as formigas,

mas prefiro as cigarras.
se não cantassem, bem mais.

não me dou ao trabalho
nem a pessoas.
só, é estado que me preenche.
cama é lugar que não me cansa.

tenho inclinação a ser pé de planta,
nasci gente por acaso.
descuido de quem me cria.

Fábio Gondim


"The broad gave me my face, but I can pick my own nose"
de 
Andy Warhol

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

era silêncio de palavra,

mais puro silêncio.
vento ventando,
poeira comendo
e o Sol doido
chapando o coco.

passado um pedaço de hora,
chuva caindo,
terra molhada.


o tempo fazendo
o que o tempo todo faz,

poesia de gestos.


(Fábio Gondim)
Wim Zurne, Com um livro azul, gravura, 50x65cm, 2000
"Com um livro azul" de Wim Zurne

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

era como o dono do silêncio,

agia como se assim fosse,
sentia-se assim.

plantado na frente da boca,
em riste,
o dedo apontava pras palavras
a hora dum breve cochilo.

Fábio Gondim

"The quiet ones" de Jennifer Hernandez


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

aquele que lê uma poesia

reescreve uma outra poesia dentro de si.

todo verso escrito, todo o baile de rimas,
dormem secretos no avesso das almas.

Fábio Gondim

feira_parte (Foto: divulgação)
"Retrato de boneco" de Walter Tada Nomura



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

chegavam todos os dias

como quem se ausenta por anos.

as impressões digitais
de gordura nos meus óculos,
turvavam minha vista
a enxergar o que comer.


sentia a fome de gestos, olhares e sinais,
mas minha boca só sabia falar pela língua dos dedos.
meu metabolismo carecia da engenharia das letras.

assim fui descobrindo com o tempo,
que palavras da boca pra fora
eram palavras da boca pra dentro,
meu alimento.

Fábio Gondim



La niña pelirrojo
Gravura da série “Da impressão à Expressão” de Ademar Will

se fosse medir a limpeza

de minhas todas palavras,
ficaria surpresa.

tudo o que digo
chegou-me por outras bocas,
da boca de estranhos.
digo às claras com palavras sujas
passadas de boca em boca.

se acha tudo bonito
são seus olhos...
ops!
seus ouvidos.

Fábio Gondim


Gravura da Coleção "A Divina Comédia" de Dalí

sábado, 13 de dezembro de 2014

soda e silêncio

pra dissolver tuas palavras tóxicas.

esses singulares chorando esses;
esses plurais deixados sós;
esses desencontros consonantais.
essa discordância de gente e ato;
esses órfãos de tiles;
esses desacentos vogais,
esse desacerto.

soda é a solução.

faz-me um favor então lavando minh'alma:
coloca teu verbo de merda
a tomar banho na soda.

Fábio Gondim



"Cowó(p)tica" de Lucas Dalla Costa

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

era do quarto ou quinto andar do corpo,

mas nem importava a altura exata
medida pelas costelas.

era de onde pensava ter saltado outra vez
o coração,
pra mais um seu interino grande amor eterno.

depois ou mais um pouco depois que isso
perceberia então o desassossego;
como quem não tarda a lavar de mau jeito
com unhas afiadas, o próprio rego.

Fábio Gondim

"Banderillas" de Pablo Picasso 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

uma vez vem repentina,

nuvens de chumbo ofegantes,
cheiro de terra salivando.
do nada é carregada pelo vento,
seu marido ciumento.

vez outra vem de mansinho,
pulando cerca, tomando de assalto.

não espero chuva passar,
molho os íntimos antes do banho
e vou com chuva.

esperar chuva passar
é desfeita com visita.

Fábio Gondim

"Banho de chuva" de Daniel Wallerius