domingo, 31 de maio de 2015

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desde muito pequena, não tirava o dedo da boca.

cresce.

o atrito das lascas
na costura do avesso da blusa,
fiando outras pontas.

o arrastar das lascas nos lábios
até as ranhuras celebrarem em vermelho sangue vivo
a alegria da sensação.

o moinho dos dentes
triturando as lascas de unha.
depois,
o cheiro da farinha úmida de queratina
aspirado entre o indicador e o polegar.

casou-se com dez.
não param de crescer.
desejo não escolhe forma

fábio gondim
"The anthropomorfphic cabinet" de Salvador Dali
.
de joelhos, pés da cama.

antes da prece, a leitura da prescrição:
amitriptilina, carmabazepina, clonazepan, zolpidem.

certo dia repete sete vezes a ladainha do receituário,
como um mantra.

adormece e acorda medicado
sem dispor das pílulas.

quando surta, repete a oração.
finda a reza, tudo resolvido.
a fé de fato, o melhor remédio

fábio gondim
mantra da prescrição
"Amy Winehouse" de Jason Mecier
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não confiava em maquiagem póstuma.

era bela, vaidosa, era miss
e assim se queria para depois.
sabida a doença de ceifa iminente então,
aprontou tudo:

alugou um quarto de madeira
numa espelunca na periferia.
vestiu-se, perfumou-se, maquiou-se
sentada à banqueta defronte à penteadeira.
tomou dúzias de pílulas.
colocou-se pronta sobre a cama,
mãos postas.

sentiu um vento frio a soprar-lhe a nuca.
não era a morte,
um buraco na parede abaixo da estronca,
perto da guarda da cama, donde passaria um gato.

sentada na cama, mais duas dúzias.
todo o ritual repetido, dessa vez com sucesso.
só faltou-lhe a alguém ter avisado.

graças ao mau cheiro e ao gato da vizinha de quarto
que trouxera um dedo anular e aliança
pra comer em casa,
fora encontrada seis dias depois,
em lastimável estado

fábio gondim
a vaidade e o gato
Óleo sobre tela de autor desconhecido
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morava numa gaveta do toucador,

logo abaixo da que guardava a coleção de pós.
a mãe tinha esse vício.

era visitada em tempos.

guardava-se ali em seu primeiro choro;
seu primeiro tombo;
o último ano no ginásio;
último passeio no esquife.

o único incômodo:
a poeira de pó compacto,
vinda duma falha no teto de finas mata-juntas
a corar seu passado casto,
maculando sua disposição cômoda de morta

fábio gondim
a fotografia e o pó
Óleo sobre tela de Jeanne Lorioz
.
para os versos-pinéis de manoel:

como se não houvesse não haver,
não haver fosse norma das horas.
onde ponteiros não andassem em círculos
e os homens encontrassem o caminho de volta.
como se bigornas pudessem voar,
pássaros forjar a tez do metal.
as coisas começassem do meio pro fim
e fosse o começo,
só mais um dos meios.


fábio gondim (para Manoel-de-Barros, avis rara)
versos-pinéis
"Rock and roll" de Jeanne Lorioz

sexta-feira, 29 de maio de 2015

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a lua vermelha míngua empalidecendo.
aberto seu olho verde,
dispara o corcel afoito.
na transversal do minuto,
rompendo a ordem, surge um outro.
o impacto surdo acordando os mortos;
corpos varando vidraças,
subindo aos céus;
confetes de vidro lançados aos montes
selando o beijo macabro.
de resto na pista a evidência:
marca de batom negro borrado
manchando a gola do asfalto
fábio gondim
farol dos desguiados
lucas-zimmermann-zupi-1
Fotografia de Lucas Zimmermann
.
o sal, o açúcar, a serotonina,
a pressão, o diabetes, a lucidez.
as mãos unidas em concha.
um sacolejo sobre o ombro direito,
outra sacudida sobre o canhoto.
espalha seus remédios sobre a tolha bordada.
não é mais conferência da medicação,
é um jogo de búzios.
lê na disposição das pílulas
que tudo ficará bem de seis em seis horas
fábio gondim
oráculo do receituário
"La consulta" de Alberto Godoy

quinta-feira, 28 de maio de 2015

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aos poucos se descobre de si:
ontem, surtado com sua senhora,
varreu com os braços o balcão da copa.
aos ares e aos cacos foram-se
bibelôs cafonas de louça,
flores de tecido necrosado,
retratos dum perfeito passado.
no meio do altar de quinquilharias,
aparecida, a santa negra,
alçou um duplo mortal carpado
e pousou ao chão,
imortal.
imaculada.
ontem descobriu-se açúcar:
de tão esquentado acordou em calda,
boca cheia de formigas
fábio gondim 
a virgem
"Nossa Senhora do Leite" de Ronaldo Mendes

terça-feira, 26 de maio de 2015

. sempre dizia a que lhe pariu,

que chinelas de ponta-cabeça
ou calçado qualquer, assim não poderia ficar
pois morte da mãe na certa seria.

vira hoje a vertical da sapateira,
sem sucesso
fábio gondim
lendas uterinas iii
"Monster foot" de Betinho Paciullo

. volta pra o meu perto

que não consigo prender respiração
por muito tempo.
vai pra perto de longe
que sua fumaça que aspiro
escurece seu filtro e meu peito.
.
deixado cem vezes pelo mesmo,
diz pra si, terno repete o eco:
volta, meu ioiô!
fábio gondim (para Fábio Gondim)
ode à ida (ou à volta)
"Wanderings" de Daliute Ivanauskaite

segunda-feira, 25 de maio de 2015

.chora sentido.

dois rios de água e sal
regam a tez da criatura.
banho de descarrego
fábio gondim
salmoura
"Um chorinho" de Paulica Santos

domingo, 24 de maio de 2015

.sempre dizia a mãe,

que planta trepadeira
da altura da cabeça não poderia passar,
pois morte na certa seria.
por isso sempre por cima ficava
toda a via
fabio gondim
lendas uterinas ii

"Western horseman" de Carlo Carrá

sábado, 2 de maio de 2015

.para os versos-antropofagia d´elias:

como se não houvesse não haver.
e cada lágrima brotada
tivesse função exclusiva de lavar almas.
cada queixume lacerado pela crua lâmina da palavra,
pelo avesso maldito do verso,
pousasse como unguento reparador
sobre o sangue das letras que estamos por tossir

fábio gondim (para Elias Borges)
"A primavera de Frida e Van Gogh" de Rogério Fernandes

sexta-feira, 1 de maio de 2015

.capaz eu ainda seja modelo vivo

das impressões dos que miram minha tez prateada. seja ainda modelo vivo
dos que pariram minhas carnes e desde,
esperam algo espiando por através do vitrô minha derme rocha,
a colorir o vazio da incubadora. carrego sim no redor de minha pele o mesmo vidro protetor a manter-me a temperatura, pois que sou modelo morto fingindo reação.

(à mosca delatora que passeia em tamancas no penhasco do meu nariz.

(entulhado aos chumaços de algodão, impedindo que vare o aroma da descomposição de meu peito.

(iludindo com rudimento os que farejam de longe o cheiro de farsa)))

fábio gondim
Ilustração de Anton Semenov

.para os versos-saliva d'eva:

como se pudesse sentir o sabor da letra
na língua da alma, 
quando faz-se passear em voo elíptico
pelo vão estreitado da boca, 
no mesmo tempo que varre dos lábios
a fuligem dos canalhas

fábio gondim (para Eva Vilma)
"Frida aos 10 anos" de Rogério Fernandes