domingo, 30 de novembro de 2014

óbvio é que sejamos metade

em princípios de relação,
tal que um quarto de nosso inteiro
seja o que escondemos no encaixe.
o outro quarto, o que a metade oposta se nega a enxergar.
no fim às partes ocultas juntam-se ao todo.

em fração de meses ou anos,
revela-se que um era bom,
dois demais.


Fábio Gondim


"Rest stop" de Paul Saari

ela, já vasta de escuridões,

mirando outra madrugada,
sua companheira de mais um fim de dia, dizia:
hoje quero tomar Sol,
quero tomar todas.
embriagar-me de suco laranja,
expor cada pedaço de cor original
para que seu raio me torre o íntimo
lambuzar-me no curaçau derramado
pelos dois sóis que saltam de minha vista.


e num lampejo de amor impróprio,
ia sonâmbula ao encontro de seu príncipe,
que não era moça que esperasse felicidade eterna,
que dirá um beijinho meia-boca.


Fábio Gondim

"Eye candy" de Sarah-Jane Szikor

sábado, 29 de novembro de 2014

o inferno da boca (o desperdício da palavra)

onde repousa minha língua
e minha palavra
não há mais céu,
só um verso seu.

vêm então e me beija os olhos
com seus lábios sujos de terra.
sela minha vista,
para que não costure mais estória
com meus dedos de prosa,
vestindo de verso gente sem palavra.


Fábio Gondim

"Abra a boca e feche os olhos" de Robert Gemmell Hutchison

sou cafetão de palavras soltas,

casamenteiro de frases feitas umas pras outras.
mediador dos jogos de palavras.

chave daquelas presas na garganta.

tenho alma de abelha, que junta e espalha.



Fábio Gondim
"Land of Milk and Honey" de Romero Britto

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

há de ter

toda cor,
em minha boca,
seu lugar.

língua de arco-íris
quero falar.


Fábio Gondim


"Ponte ferroviária e o arco-íris" de Max Beckmann

.estou mesmo de amor perdido.

doido de rasgar minh'alma em confetes
e celebrar aos rodopios
a improvável recomposição do ser que era.

varrido de toda sã consciência
e limpo de razão alguma,
que me poupe desse tamanho torpor
filhadaputamente mudo,
que no silêncio de minhas carnes, grita.
e treme.
não de dor, mas medo
de outra vez achar-me são

fábio gondim



"Untitled" de Shannon Sutton

de toda a ventania

que soprava em seus pulmões
- a tormenta das paixões -
foi poeira se acumulando
em suas almas amantes.

a cada dia mais espessa e alta
não se tocava nem se movia
como um pó sagrado,
uma sujeira imaculada

Fábio Gondim 


"Push" de Erin Cone

de sua boca brotavam sirenas de anunciação,

de seus olhos relampejavam faróis de busca.
procurava pistas quais a trouxesse de volta pra si,
facilidade tinha imensa em perder-se.

perdia-se num piscar de olhos,
num estalar de dedos.
um descuido que fosse,
um cruzamento de braços
e no abrir de olhos achava-se perdida.

duraram pra sempre seus desencontros
e como seus amorinhos eternos,
acabaram depois

Fábio Gondim

Da série "Miniventuras extrapassionais de Charlenne Shelda"


"Untitled" de Nicoletta Ceccoli

hoje, logo pela manhã,

agosto cuspiu-me poeira nos olhos.
rapaz tempestivo,
trazedor dos pés de ipê.
desses doze daí,
o mais urgente,
afoito,
adolescente das estações.

meio cego pelo gesto
nem houve tempo
pra resposta,
já ia longe e rápido o moço esguio
levando suas folhas a passeio

Fábio Gondim 


"Untitled" de Nicoletta Ceccoli

minha mão tão só e vazia,

encheu-se de toda sorte
na companhia de um lápis

Fábio Gondim 

"Toroooo..." de Marta Altés

o rumo do traço

rompendo estradas pro infinito.
o ofício daquele,
rasgando entre linhas - ruas sem fim. 

reconhece-se o artista
um fazedor de mapas,
um inventor de caminhos.

caminhos que dêem onde se parta,
mapas que levem pra onde se perda
pois que toda arte
detém os quatro nortes

Fábio Gondim


"Composição com vermelho, amarelo e azul" de Piet Mondrian 
"Mondrian dress" de Yves Saint Laurent

como se fosse mesmo eu

o objeto de alcance das medidas.
e meu fim estivesse a sete palmos
para dentro de minha carne e ossos.
e minha felicidade transpondo minha pele
se alojasse no meu centro.
e tudo que é mal e é bem me varasse ao meio
e depois lá ficasse.
e nada precisasse de além buscar.

ainda inventaria um limite para dentro transpor
pois que tenho toda alegria e angústia em mim,
mas inda me faz falta o que não sei

Fábio Gondim

Para Raquel Dias


"She's so lovely" de Nicoletta Ceccoli

a boca leva ao ouvido

o ouvido leva à alma
a alma leva à lágrima
a lágrima leva à mão
a mão leva à poesia
a poesia leva e traz.

o caminho da palavra

Fábio Gondim

"Castello di cuori" de Nicoletta Ceccoli

era oráculo andarilho

de beira de estradas.
carregava em seu cerne,
num saco de estopa, sua matula:
um pouco de comida,
um pouco de água,
um monte de palavras.

mesmo de poucas falas,
quando perguntado sobre a cura
dizia em pronta resposta:
palavras,
que iluminam faces ocultas
moldando dias ruins
em vésperas de festa

Fábio Gondim


"Untitled" de David Kracov

depois de lotar mares

com a nascente de seus olhos cheios
esvaziando copos em bares
pro sumidouro de seus íntimos vazios,
passadas noites tantas péssimas,
por conta deu-se
que sorvia lágrimas

Fábio Gondim

Da série "Miniventuras extrapassionais de Charlenne Shelda"


"Untitled" de Lyle Motley

é natural

que pessoas pensem
o mundo girar no torno de si.

basta um breve rodopio
e mira-se o mundo à sua volta.
é natural.

distinguem-se das egocêntricas
as que, por altruísmo construído
ou desprendimento nato,
fingem ignorar o fato
de o resto do mundo
girar na sua órbita.

as demais não conseguem
enxergar a beleza do gesto,
porque invariavelmente carregam no rosto
duas tapas de pepino
impedindo o caminho dos olhos

Fábio Gondim 


"Cat" de Marcelo Lelis

meus olhos, nascentes de mar,

salgam minhas carnes a conta-gotas
para que sonhos conservem.
banham-me em descarrego
para que a doçura permaneça.

fio de mar escorre pelo meu ventre
e empoça no cemitério de lágrimas
cultivado ano após ano.

meus olhos d'água à deriva,
meu oceano

Fábio Gondim


"Untitled" de Yan Wei

era pra ser o momento perfeito:

o tempo era o minuto último,
antes do primeiro ponteiro inventado
pôr-se a andar em círculos.
o lugar era o pedaço último,
antes que o rascunho bêbado de um lápis
mapeasse o limite de espaços.

a pessoa,
qualquer que renasça nesses termos:
que desobedeça hora e lugar,
que não careça asa
e desconheça pressa

Fábio Gondim



"Ephemera" de Rafael Silveira

depois de tanta água

a correr por debaixo de si,
a ponte inquieta, mas imóvel,
prostrada em seu leito transversal,
repousa insone
a observar seu amor,
que passeia entre caudaloso
e refece
pelo seu vão de pernas.

assim ou assado todos amores o são

Fábio Gondim

"Meninas na ponte" de Edvard Munch

passeio pelos cantos

onde não há visita.
falo a paredes de ouvidos moucos.
liquidifico sentimentos duros
ordenhando corações de pedra.
tenho para mim
que essa busca por chifres
em cabeça de cavalo,
esses murros em ponta de faca,
são a espera do encontro
desses pedaços meus
espalhados pelo mundo.
eu que roubo palavras
de vidas que sequer conheço,
por certo sou roubado
no mesmo tempo e espaço.

a planta de meus pés
cansada desses caminhos tantos,
me pergunta onde estão suas raízes...
eu desconverso
e vou me tornando sempre outro.
a cada passo.
de cada verso

Fábio Gondim


"Untitled" de Pawel Kuckzynski

meus olhos de espelho

atraem trovão e raio.
e quero mesmo que me partam
no piscar de relâmpagos,
que amor sereno
é passeio de montanha-russa no plano.

meu plano é alguém que some
me subtraindo;
limpando os bolsos de meu coração outra vez,
deixando-me um beijo de indez.
pois que na dança dos pedaços ao vento
é que se fecundam flores.
a volúpia dos amores ligeiros
é que nos faz amar de novo.

meu amor
dura o tempo de uma inspiração
e quando expira,
na perda do fôlego,
quero um amor novo
que me relampeje o estômago
e me bagunce o âmago

Fábio Gondim


"Untitled" de Pawel Kuczynski

hoje Junho acordou

a gestos largos.
ventando tudo pro alto,
imitando agosto.

o Sol escaldando no rosto,
o corpo invadido de cheiro
imitando Janeiro.

do meio-dia pra tarde
afogado em chuva forte,
de pingo longe de escasso,
arremeda de Março o tempo.

já coberto de temperamento,
na noite vem frio tamanho,
refazendo as vezes de Junho

Fábio Gondim


"I’m sorry but you were holding me back" de Danna Ray

pares

quem experimenta
e mesmo quem inventa, 
sabem que amor e dor
são o mesmo sentimento.

(Fábio Gondim)
"Autorretrato con collar de espinas" de Frida Kahlo.

velejando no calor

de líquidos secretos,
ricocheteiam os corpos
aos gritos.
vazam águas, vazam às bicas.
e no contato da poeira
das peles que antes silentes,
abre-se o pântano escaldante
onde o amor sobrevoa,
sempre em estranha companhia.

riem-se de dor,
roem-se de prazer.
deixando claro
desde o primeiro momento
que o amor,
da dor
é companheiro nato

Fábio Gondim


"Soma 12" de Guy Denning

não há verso que eu tenha escrito,

não há pauta que eu tenha inventado,
que de mim seja produto.

a impressão de cada texto,
do mais breve ao mais vasto
foi lida com os olhos do tempo.

eu arranquei os olhos do tempo
e pus no lugar dos meus.
assim,
o que vês com a vista tua,
é contorno do tempo passado
desenhado em segunda pessoa

Fábio Gondim


"Ocean’s symphony" de Damis

tu cheiras tulipas.

pra quê tanto perfume
em tão pouco espaço de verso?

Fábio Gondim

"November" de Shannon Stamey

andava tão distraído,

que não as percebia a meu lado,
as vozes.
acompanhavam-me feito sombra
sob a luz de um poema.
ouvia a todas,
vindo de todo lado.
quando por alguns dias
a nenhuma ouvia
me achando curado,
nem era falta de som,
era pura distração.

percebia então desde,
que cada verso exato
de espaço métrico,
era um surto psicótico.
e que ouvir vozes
e imitar risos e dores,
eram das coisas, as melhores

Fábio Gondim


"Portada" de Raquel Aparicio

Maio,

que sempre agoniza
seus últimos dias
pelas balas de fogo de Junho,
hoje deu-se por vingado.

numa chuva de molhar
toda a pólvora do circo,
invadiu madrugada de Junho
com sua calma,
pra morrer sem artifício

Fábio Gondim


"Garages" de Paul Wilson